O diálogo abaixo se deu em um colégio de elite em São Paulo entre uma orientadora educacional e um empresário, pai de aluno, e uma terceira pessoa. Sala dos Professores: uma mesa grande, várias cadeiras, dois Macintoshs, pôsters, estantes com muitos livros, bebedouro elétrico, cafeteira importada e um armário grande com uma das portas levemente entreaberta.
- Como vai o sr.? Muito prazer, meu nome é Alexandra, eu sou orientadora educacional daqui do colégio, mas pode me chamar de Sasha.
- Como vai, Professora? Aurélio, pai do César Aurélio, prazer. O que houve? Ele está dando problemas, é isso?
- Nãããão, não, de jeito nenhum! O César Aurélio é um ótimo aluno e um garoto maravilhoso...
- Está faltando às aulas? O meu motorista deixa ele na porta, mas não consegue saber se ele foge ou não e...
- Nããããããããão, há, há... nada disso!
- Ele não está tirando boas notas? Falsificou o boletim?
- Há, há, não, de jeito nenhum!
- Maconha, é isso? Tá fumando maconha, né? Eu sabia!!! Maconheiro miserável! Eu vou...
- Nada disso, de jeito nenhum!
- Então, o que é? A sra. me chamou aqui pra...?
- É o seguinte, na verdade, é uma ótima notícia... mas primeiro só uma perguntinha, o sr. é...
- Pai. Sou pai do César Aurélio.
- Não, eu quis dizer... sua formação...?
- Sou engenheiro. Eu dirijo uma construtora de grande porte.
- Ai, engenheiro, é? Puxa... hummm... bom, então vamos tentar uma outra abordagem...
- Como assim?
- Bom, doutor, eu sou orientadora educacional há 15 anos e sou especializada em aplicar testes vocacionais nos alunos que estão no último ano do Ensino Médio como seu filho e...
- Ele quer ser engenheiro. Meu avô era engenheiro, meu pai era engenheiro, eu sou engenheiro e ele quer ser engenheiro também. Ele já deve ter falado isso pra sra..
- Pode me chamar de você... Sasha, lembra? Há, há!
- Professora, eu sou um homem ocupado e confesso que não estou entendendo porque a sra. me chamou aqui...
- Ok, certo. É que recentemente eu fiz vários testes com o César Aurélio e os resultados me deixaram muito feliz porque ele...
- Engenheiro? Deu engenheiro, né?
- Na verdadeeeeee... não!
- Como assim? Não é possível!!! ...Médico, deu médico, né? Eu sabia! O avô materno dele é médico e a mãe deve ter enchido a cabeça dele...
- Não, não é isso!
- "Não é isso"? Então, é advogado! Não é o ideal, vou demover ele dessa idéia com o tempo, mas um bom advogado teria emprego na nossa empresa sim...
- Dr. Aurélio, também não deu advogado não...
- Deu o quê, então?
- Deu... ven...
- VENDEDOR???
- Não... ventríloquo...
- O QUÊ???
- ...Sasha, pode me cham...
- VENTRÍLOQUO??? COMO ASSIM? A SRA. TÁ DE BRINCADEIRA COMIGO?
- Não, não estou de brincadeira com o sr. não, longe disso. A verdade é que o César Aurélio é um ventríloquo nato. Ele nasceu pra isso! Uns nascem pra médico, outros pra advogado, outros nascem até pra serem engenheiros, há, há, mas seu filho é ventríloquo. O melhor deles, inclusive! É uma profissão como qualquer outra, né? Já imaginou um show de variedades sem um ventríloquo? Não dá, né? Não ia ter menor graça!
- A sra. está completamente louca!
- Ok, vou ser muito sincera: aquele modelo antigo de profissões "médico-engenheiro-advogado" já acabou, sabia? Ou o senhor acha que todo mundo que é lambe-lambe ou instrutor de auto-escola é infeliz, que não quiseram ser isso? Tem gente que nasce com as vocações mais diversas, sabia?
- Pra Palhaço de Farol também?
- CLARO que sss... bem... pra isso aí eu não tenho bem certeza não...
- Por que todos eles falam que nem o Tiririca, não têm graça NENHUMA, são agressivões, tão sempre barbados e chamam qualquer pessoa que use óculos de Clark Kent?
- Olha, nisso vou ter concordar com o sr.... essas perguntas são um mistério moderno mesmo... Ninguém nasce com vocação pra fazer aquilo não... é espírito de porco mesmo e dos piores!
- Mas voltando ao meu filho... Onde ele está?
- O sr. deve ter alguns marceneiros na sua empresa, né? O sr. podia pegar um e mandar ele fazer um boneco de maneira pro César Aurélio! Ele ia adorar! Com aquela cara meio esquisita e um nariz vermelho, há, há! (Ela ergue o antebraço e começa a bater com o polegar nos outros dedos da mesma mão unidos imitando uma boca falando). É tão legal aquele boneco abrindo e fechando a boca, insultando todo mundo, né, há, há? Eu adoro! O sr. devia ficar muito feliz com isso pois ele é um gênio do ventriloquismo! Ele poderia ir AGORA pro Circo de Soleil, sabia? Tá prontinho!
- ENGENHEIRO! ELE É UM ENGENHEIROOO!
- Desculpe Dr. Aurélio, mas seu filho nasceu com um talento incomum. O sr. sabia que ele responde presença imitando a voz dos colegas que faltaram? Ele é um gênio! Ninguém percebe! Ele conseguiu salvar uns três vagabundos de reprovarem por falta esse ano. Isso é que é amigo!
- Como assim? Isso só pode ser brincadeira da sra.. Eu quero falar com a diretora! Eu vou tirar o meu filho da sua escola agora mesmo, ouviu?
- Lamento, mas não vai adiantar... todos os testes que ele fizer na vida vão dar ventríloquo! Eu sou psicóloga pós-graduada especialista em teste vocacional! O sr. devia ficar feliz e aceitar seu filho como ele é de verdade: um ventríloquo maravilhoso, genial, sensível e...
- ENGENHEIRO! ENGENHEEEEEEEIRO!
- Eu também não acreditei no começo... esse resultado é bem raro, sabia? Aí eu fui pesquisar a história do ventriloquismo e, pelo que deduzi, o seu filho vai avançar a essa arte milenar em pelo menos em uns 300 anos! Ele vai ser o Albert Einstein do engastrimitismo, hahaha! Ela faz coisas que ninguém jamais conseguiu fazer! O senhor conhecia essa palavra? EN-GAS-TRI-MI-TIS-MO? Não é legal?
- A sra. está doida? Saiba que eu quero ver meu filho agora! Pode chamar ele que eu vou tirá-lo dessa escola agora!
- Ok, o senhor é que sabe, mas não vai mudar os resultados...
- Ora, resultados uma ova! Chame o meu filho!
- Ok... se o senhor quer assim... César Aurélio, pode sair...
Aos poucos, o jovem César Aurélio vai saindo de dentro de um armário atrás da professora, onde estava escondido, para enorme surpresa do seu pai...
- Mas que palhaçada é essa???
- "Oi, pai..." diz o garoto levemente envergonhado.
- Sasha falando com uma outra voz: Não é palhaçada não, Dr. Aurélio... essa voz de mulher que o sr. estava ouvindo, na verdade, é do seu filho.
- Ei, sua voz mudou agora!!!
- Não era a minha voz! Era a dele, do seu filho!
- Voz de mulher? Como assim?
- Eu não disse pro senhor que ele é um gênio do ventriloquismo, que faz mil vozes diferentes, projeta todas com uma precisão incrível...Viu?
- Mas eu ouvi e vi a sua boca se mexendo perfeitamente e...
- É que, na verdade, seu filho queria arranjar um jeito de lhe dizer qual a profissão que ele quer ser e me pediu ajuda. Então nós escrevemos o texto, eu decorei e esse tempo todo eu estava dublando o César Aurélio. Legal, não? Quando eu me perdia, eu olhava nesses papéis aqui, o texto... ”colinhaaa”, rá, rá... que feio, né? Logo eu, hahahaha!
- Impossível!! Mas como vocês dois sabiam o que eu ia dizer?
- E que você já fala isso tudo isso aí há muito tempo, pai... é muito previsível... então só foi botar no papel e dar pra Sasha decorar, saca?
- Era só essa que me faltava... um filho ventríloquo! Logo eu! Essa é boa.... fala rilhando os dentes de raiva e indignação. Vai ser Engenheiro! Não quero saber! Vai ser o que eu estou dizendo por que eu sei o que é melhor pra você, você é meu filho...
- Viu só? O sr. também tem o jeito!!! Fala muito bem com a boca fechada!
- Eeeu? Lógico que não!
- Fala sim! E tem mais uma outra coisa que o senhor não percebe: o sr. já é um ventríloquo subconsciente! O sr. já fala por ele, né? Sempre falou, dá pra ver... O sr. é o exemplo de ventríloquo do garoto, alguém que fala pelo outro. Desculpe a franqueza, mas na sua casa, na sua empresa, o sr. deve fazer todo mundo de ventríloquo. Já percebeu isso? Tanto no gestual físico quanto nessa coisa de decidir as coisas pelos outros... eu sei, o senhor é pai, quer o melhor pra ele, mas às vezes não é o que o senhor quer e sim o que ele, mesmo ainda novo, já sabe, entende?
- Na verdade.... eu... eu...
- Vamo embora, pai... desculpe, mas espero que você entenda...o que eu queria mesmo é fazer um curso de circo no Canadá...
- Eu não tô entendo mais nada... hã...CIRCO? Circo não, só te peço isso! Não dá pra ser de teatro, pelo menos?
- Dá! Na boa! Olha pai, eu entendo o seu lado, mas me dá essa chance, por favor... você só vai parar de reclamar de qualquer outra profissão que eu escolher, exceto engenheiro, é óbvio, de dentro da minha piscina, eu sei, mas...
- Ok, vamos ver, vamos ver... como é que você fez tudo aquilo?
- Brigadão, Sasha! Você foi demais!
- Que isso, querido! Foi um prazer! Você que arrasou! Vou te contratar pra falar com o chato do meu ex-marido no telefone, hahaha!
Pai atordoado e filho animado saem da sala.
- Ufa... que dureza! Vamos ver... ah, mas que "legal"! Vou ter que falar agora pra um pai bicho grilo cujo o filho quer ser corretor da bolsa...haaaaaja paciêêêêência, hahahahahaah....
- PODE ENTRAAAAR!
Adolar Gangorra tem 89 anos, é editor do site www.adolargangorra.com.br e nunca deu pra profissão nenhuma por puro medinho mesmo!
Um comentário:
Manda para a Porta dos Fundos.
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